Sobre Júlio Resende e a BD que esta exposição nos mostra

Texto publicado no Catálogo “Júlio Resende: A Palavra e a Mão” do Museu Nacional Soares dos Reis que documenta a exposição que esteve patente neste museu entre 22 de Março e 16 de Junho

Quando um artista como Júlio Resende, com uma obra significativa e reconhecida nas Artes Plásticas, comporta no seu percurso uma experiência na criação de Banda Desenhada, esse “acidente” é olhado – pelos críticos e experts em arte – como mera curiosidade, aspecto picaresco num percurso rico e multifacetado.

Do outro lado, dos da BD, os entusiastas – que são sempre os defensores mais activos deste campo – olha-se para a ocorrência como uma medalha, um contributo inestimável para a “causa” da dignificação e reconhecimento da chamada arte nona.

Dum lado e do outro, a obra concretaé, na mais das vezes, ignorada.

O que,neste caso, não admira porque o conhecimento concreto desta é bastante escasso, e algo limitado o seu acesso. Não há nenhuma recuperação nem que seja de parte dessa obra – e ela não parece ser tão escassa como isso – em edições actuais, falha que seria desejável colmatar.

Esta exposição dá-nos assim a oportunidade de tomar contacto com parte do trabalho de Resende no que se pode convencionar de BD (embora com muitos afins incluídos) e dá-nos essa oportunidade através – essencialmente – do trabalho que o pintor desenvolveu para um público infanto-juvenil na revista "O Papagaio" dirigida por Adolfo de Simões Muller.

A obra de BD de Resende espraiou-se por outras revistas e jornais (nomeadamente O Primeiro de Janeiro com Matulinho e Matulão, mas os exemplos de trabalho nestes personagens que maioritariamente podemos ver na exposição é de uma fase tardia e decorrente de uma exploração diferente dos personagens e não propriamente BD.

Mantenhamo-nos, portanto, no Papagaio onde o autor chega cedo, logo no início da vida deste semanário católico em Novembro de 1935, no seu 32º número.

Temos, portanto, um Júlio Resende com 18 anos (nasceu em 1917) a utilizar o seu talento artístico e a sua imensa qualidade como desenhador para ajudar a pagar o seu curso nas Belas Artes e, para isso, a seguir as influências da época.

Talvez seja importante perceber duas coisas para contextualizar o trabalho. Por um lado, que um talento como este era crucial para uma publicação como esta e, por outro, que um rapaz de 18 / 19 anos lançado para a folha branca do papel, desafiado a criar um trabalho em linha como seu tempo e para um público com uma faixa etária precisa, irá procurar obviamente referências em seu redor e inspirar-se no que ele próprio via e ouvia.

Assim Júlio Resende (ou JR, ou Resende, ou Dyas) espalha o seu talento pelas páginas da publicação numa actividade intensa e num verdadeiro papel de pau para toda a obra. Ilustrando contos, desenhando corpos para as fotos tipo passe dos leitores como ilustração dos seus desejos futuros, desenhando capas, adaptando obras clássica da literatura (Robinson Crusoé) e criando personagens e histórias múltiplas e multifacetadas.

Neste enquadramento é natural que a individualidade e o talento de um autoracabe por sobressair e, no caso de Resende, o tema e o traço humorístico parecem ter colhidas as suas preferências.Muitas vezes com a colaboração do irmão António nos textos e nas tramas,o autor desenvolve personagens e absorve referências e técnicas, influenciadas seguramente pelo contacto com o melhor que se produzia então.

As BD do pintor são impregnadas com características que advêm de muitos lados e comportam muitas e, por vezes, contraditórias referências.

Em “Robinson Crusoé” assistimos à adaptação clássica de uma obra universal com um desenho realista, onde o autor faz coexistir duas técnicas para a narrativa fluir. Por um lado, ilustra apenas um texto pré-existente explanadoem baixo e em que a relação não é propriamente dinâmica (é o texto que manda e o desenho apenas acompanha) e faz-nos lembrar a obra de um Walter Booth (1889-1971), por outro complementa a acção com diálogo, recorrendo às filacteras (balões) próprias da BD.

Com Fagundes Arrepiado (personagem multifacetado que o autor acompanha ao longo desta sua carreira no Papagaio muitas vezes com os textos do seu irmão António), Dyas (pseudónimo / nome que o autor utiliza para assinar neste caso) produz curtas histórias humorísticas com um gag –na maior parte das vezes visual – e retratando o personagem como um folião, cheio de boas intenções e pleno de mau jeito, acabando sempre em más situações que apelam ao riso do leitor (Cá Estou Eu; As Férias do Senhor Arrepiado; Nas Corridas; Uma Ideia do Senhor Arrepiado; Arrepiado Faz Ginástica; Ora toca a Rir; E agora?; Conselhos Seguidos à Letra, são alguns dos títulos e páginas que se podem encontrar na publicação e que emulavam seguramente personagens e ambientes dos comics contemporâneos americanos embora um pouco distantes da crónica de costumes que alguns deste corporizavam.

Mas outros ventos sopravam de outros horizontes e o senhor Arrepiado foi também herói (involuntário como a maior parte destes) de uma série de aventuras em continuação (Arrepiado e Graça Cowboys; Arrepiado, Graça e Feli-Feli na China; Volta ao Mundo numa Banheira; Fagundes Arrepiado vão à Lua; à Procura da Goma Arábica) que traduziam seguramente outras influências e outras técnicas, histórias muito radicadas no folhetinesco (que também praticavam nas ondas da rádio) com a procura de paisagens exóticas e aventuras mirabolantes, criando um grupo de amigos para o herói não permanecer solitário.A aventura continuava de número para número e o “suspense” era realçado no fim de cada página desafiando o leitor a imaginar o que aconteceria na semana seguinte.

Imaginação que seria seguramente um desafio também para o autor, pois facilmente se advinha que a sequência era construída caminhando e que nada nestas histórias tinha um plano estruturado com princípio meio e fim.Nada que não fosse comum em publicações deste tipo e em obras hoje referencia da BD mundial. O exemplo mais claro (e seguramente uma das influências maiores destas narrativas de longo curso de Resende) é o belga Hergé e o seu Tintin cujas primeiras obras foram também assim construídas e publicadas originalmente.

Também nestas obras de Resende se encontram, simultaneamente, narrativas fluidas visualmente, sem grande apelo à narração complementar, com uso do diálogo em filactera, mas alternando –por vezes na mesma obra– longas sequências servidas apenas por ilustrações acompanhadas por um texto narrativo que explica a acção.

Resende autor jovem e seguramente atento ao que o rodeava e aos exemplos com que contactava da Banda Desenhada do seu tempo, tudo absorveu e tudo usou, claramente duma forma pouco consciente ou construída em coerência.

Mas, num trabalho claramente encomendado, soube garantir e expressar uma frescura em muitas destas obras, que estão assim em consonância e em linha com o tempo em que foram produzidas e mereceriam um conhecimento e um estudo mais profundo do que aqui é possível.

Pena é que – aparentemente – não tenham subsistido até hoje os originais que deram origem a estas publicações. Mas até nisto – infelizmente – o autor estava em consonância com a época, onde era normal estes não serem valorizados e nunca serem devolvidos aos autores.

Júlio Resende continuou – pintor já consagrado – a trabalhar em ilustração, cartoon e alguma BD o que prova que o seu talento também encontrou – nestaexperiência de juventude – um prazer claro e uma satisfação artística plena na sua realização.

—Júlio Eme

Hipertexto #96


Krazy Kat no domínio públicoJoel Franusic.

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